Marcar a pele requer cuidado, zelo e um certo bom senso... só se marca aquilo que importa, e ás vezes somos marcados sem querer, sem que se importem, cicatrizes da vida, da queda de bicicleta, do tombo de criança... a pele guarda a memória de outrora, algumas marcas vistas a olhos nus, outras mais escondidas: ou no fundo da alma ou no meio da cabeça, como a marca que tenho no alto deste belo cocoruto bem escondidinha, um afundamento superficial de crânio.
Quando era pequena gostava de acordar bem cedo e ler gibi embaixo da mesa de costura da minha mãe, um dia ao ser chamada as pressas levantei embaixo da mesa e bati a cabeça num parafuso enorme que estava lá, doeu horrores e me deixou uma marquinha que só o mais experiente dos mestres do cafuné poderia encontrar...
As marcas que levamos ou deixamos algumas vezes são opcionais, as tatuagens são assim...existentes desde tempos remotos como no antigo Egito, símbolos de poder e maturidade em Bali, são acima de tudo desenhos que fazemos em uma tentativa de celebrar ou enterrar um momento, uma dor, um amor, um valor...
Proibido por diversos cultos religiosos e celebrados em tantos outros, o rito de marcar a pele ora é visto como profanação do corpo sagrado que nos foi dado, ora como proteção e autonomia espiritual e moral.
Marinheiros e navegantes se encarregaram de transmitir o costume aprendido, nas terras orientais da Polinésia, aos ocidentais mais atrevidos, bruxas na idade média eram marcadas para serem queimadas na fogueira da inquisição.
Mafiosos e bandidos usaram a tatuagem para criar um código rígido de posição e identificação, os modernos marcam palhaços, pinups, tribais e ideogramas japoneses... esses muitas vezes equivocadamente, tenho um conhecido que jurava estar tatuando a palavra amor e a realidade descoberta na feira da liberdade em São Paulo anos depois era a de que o ideograma significava "tenho fome", o que não era de todo mentira, afinal ele era um desses obesos de mente.
Eu gosto de tatuagens, o Chico também... é dele uma das músicas que eu mais gosto e que traduz bem a intenção da coisa, marcar, eternizar um momento, numa urgência de desejo e afeto, nostalgia e autoconhecimento. Mas no caso do sempre incrível e muso mor Chico Buarque, a tatuagem é um desejo de viver eternamente colado ao ser amado, lindo, lindo:
Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Prá seguir viagem
Quando a noite vem...
E também pra me perpetuar
Em tua escrava
Que você pega, esfrega
Nega, mas não lava...
Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem...
E nos músculos exaustos
Do teu braço
Repousar frouxa, murcha
Farta, morta de cansaço...
Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem...
Quero ser a cicatriz
Risonha e corrosiva
Marcada a frio
Ferro e fogo
Em carne viva...
Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam
O corpo todo
Mas não sentes...