quarta-feira, 24 de julho de 2013

Apenas uma carta

"Não mexe comigo
que eu não ando só.."
(Carta de amor  - Maria Bethânia, 2012)

Era alvo certeiro, andava nas matas sempre alerta, vigia de si mesma, vigia da noite... Os olhos do outro buscavam sua pele, seus cabelos, seus medos... fugia, fingia fraqueza e pedia socorro ao velho que passava e lhe estendia a mão calejada em forma de folha. Pelas mãos foi levada ao alto, alto de torre, alto de morro, alto deserto....

Entre mil grãos de areia recordava o caminho de casa, o caminho da alma e num oásis de verde miragem avistou seu coração, devolvido pelos outros que o tomaram a força. O coloca no peito, ele ainda cabe, ainda vale? Ja não avista o velho de mão folhosa e nem tampouco o deserto, está de volta a rotina de gesso e cimento, de argila e tintas, de tecidos e brocados, feijão e empanados, desperta do sonho. No centro de sua vida retoma suas cores, retoma o papel colorido que está sobre a mesa, ainda receosa dos olhares daqueles que dela tudo queriam escreve uma carta sem endereço, mas de bom apreço e destino certo, com o coração no peito está amparada novamente:

"Não mexe comigo, que eu não ando só,
 Eu tenho Zumbi, Besouro o chefe dos tupis,
Sou tupinambá, tenho os erês, caboclo boiadeiro,
Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris,
Zarabatanas, curare, flechas e altares.
À velocidade da luz, no escuro da mata escura, o breu o silêncio a espera.
Eu tenho Jesus, Maria e José, todos os pajés em minha companhia,
O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos, o poeta me contou.
Não mexe comigo, que eu não ando só,
Não misturo, não me dobro.
A rainha do mar anda de mãos dadas comigo,
 Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim.
É do ouro de Oxum que é feita a armadura que guarda meu corpo,
Garante meu sangue, minha garganta.
O veneno do mal não acha passagem
E em meu coração Maria acende sua luz e me aponta o Caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã, giro o mundo, viro, reviro.
Tô no recôncavo, tô em Fez.
Voo entre as estrelas, brinco de ser uma,
traço o cruzeiro do sul com a tocha da fogueira de João menino,
rezo com as três Marias, vou além, me recolho no esplendor das nebulosas,
descanso nos vales, montanhas, durmo na forja de Ogum,
mergulho no calor da lava dos vulcões, corpo vivo de Xangô.
Não ando no breu, nem ando na treva
É por onde eu vou, que o santo me leva
Medo não me alcança.
No deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo.
Meus pés recebem bálsamos,
unguentos suaves das mãos de Maria Irmã de Marta e Lázaro, no Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo.
Não começa, nem termina, é nunca é sempre.
É tempo de reparar na balança de nobre cobre que o rei equilibra,
fulmina o injusto, deixa nua a Justiça.
Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão,
E pra onde você for, não leva o meu nome não
Onde vai valente? Você secou, seus olhos insones secaram,
não veem brotar a relva que cresce livre e verde longe da tua cegueira.
Seus ouvidos se fecharam à qualquer música, qualquer som,
nem o bem, nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe.
Você pisa na terra mas não sente, apenas pisa.
Apenas vaga sobre o planeta, e já nem ouve as teclas do teu piano.
Você está tão mirrado que nem o diabo te ambiciona, não tem alma.
Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.
O que é teu já tá guardado.
Não sou eu quem vou lhe dar,
Eu posso engolir você, só pra cuspir depois.
Minha fome é matéria que você não alcança.
Desde o leite do peito de minha mãe, até o sem fim dos versos, versos, versos,
que brotam do poeta em toda poesia sob a luz da lua
que deita na palma da inspiração de Caymmi.
Se choro, quando choro, e minha lágrima cai,
é pra regar o capim que alimenta a vida,
chorando eu refaço as nascentes que você secou.
Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio.
Vivo de cara pra o vento na chuva, e quero me molhar.
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi, cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta. "

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